Autarcias

Nos dois últimos dias traduzimos dois textos de Slavoj Zizek para a página Internet da revista Libertária. O primeiro dá pelo título de Há um claro factor racista na histeria ao novo coronavírus e foi escrito, a nosso ver, demasiado prematuramente (3 de Fevereiro) e estaria um pouco desactualizado não fosse o pormenor de ter notado que na Amadora e em Lisboa realmente as mercearias dos indianos e chineses continuam de prateleiras cheias enquanto que as dos portugueses, bem como os supermercados e hipermercados, estão com prateleiras vazias e filas de gente à porta, vale uma leitura atenta.

O segundo é uma análise bastante realista à batalha política a decorrer actualmente nos Estados Unidos, se bem que somos da opinião de que a actual pandemia muito provavelmente irá resultar no adiamento das eleições presidenciais por parte de Donald Trump, eis um excerto de EUA entram numa brutal guerra civil ideológica à medida que surge um sistema quatripartidário: 

"Os EUA estão agora a migrar de Estado bipartidário para Estado quatripartidário: na realidade existem quatro partidos a preencher o espaço político – os republicanos do sistema, os democratas do sistema, os populistas da direita alternativa e os socialistas democráticos."

Por um lado as pessoas paradas semanas ou meses em casa terão muito tempo para pensar na vida que têm tido até agora, isso será um desafio imenso para o sistema, uma das suas forças é a falta de tempo das pessoas, ocupadas entre emprego, transporte, diversões e tarefas inúteis.

Por outro esta crise, estou em crer, irá dotar as profissões normalmente negligenciadas e desprezadas (empregados fabris do sector alimentar, funcionários de supermercados, auxiliares e funcionários das limpezas, polícias e vigilantes) da consciência quanto ao papel crucial que desempenham na sociedade e de como essa importância não corresponde aos seus rendimentos (com excepção dos vigilantes e polícias, os restantes ganham o ordenado mínimo).

Imagem: Os Pedreiros da autoria de Gustave Courbet, 1849.

Caso não estejam familiarizados com o filme "Idiocracy - Terra de Idiotas" informo que o DVD do mesmo ainda está à venda em várias FNAC, mas se mesmo assim não encontrarem está na Amazon por uns 5€ nesta era digital, a comédia de 2006 que em 2020 se tornou num verdadeiro documentário quanto ao emburrecimento da população mundial e seus governantes...

Ainda recordo quando fui à redacção d"A Batalha" pela primeira vez, eu, o Ricardo Martins e uma moça vegan tinhamos fundado o Colectivo Eco-Anarquista e fomos recebidos com um incrédulo "mas vocês querem exterminar 2/3 da população mundial???" da parte do Manuel Baptista. O Manuel na altura animava a newsletter "Luta Social" e referia-se aos escritos de Richard Hunt, um radical da extinta "Green Anarchist" britânica, enquanto que nós praticamente só conhecíamos os mais recentes John Zerzan e as "Species Traitor" e "Green Anarchy".

Esclarecido o equívoco, acabei por ser tesoureiro do sindicato libertário ACINTERPRO fundado pelo Manuel, Goulart Nogueira e o auto-exilado Pier Francesco Zarcone (uma lenda viva do comunismo libertário italiano, que muita saudade me deixa desde que perdi o seu contacto) et alli. Ainda há dias recordei vários momentos com Goulart Nogueira, ainda um irredutível anarquista açoriano, e ficamos embevecidos ao ver que afinal, quando na altura julgávamos caminhar para a extinção, surgiu uma nova geração na "Batalha", IndyMedia e "A Ideia". E novidades como o jornal MAPA (que alastrou ao Shifter), o Guilhotina.info e o Portal Anarquista ou até o Fumaça entre provavelmente muitos outros projectos de uma geração de inspiração libertária onde nem conhecemos ninguém.

Recordo o meu primeiro discurso na Biblioteca Museu República e Resistência em 2005 ou 2006 onde estavam presentes mais anarquistas da CGT espanhola, franceses e italianos da FESAL (Federação Europeia de Sindicalismo Alternativo que nem na Wikipédia surge) do que portugueses. Mas choca-me notar haver hoje uma certa ortodoxia e purismo que há 15 antes não se notava, mesmo sendo um outsider rendido ao sistema, como a Letra Livre aceitar zines fotocopiadas há 15 anos e hoje negar vender a Libertária por ser "partidária", mesmo com Chomsky e Zerzan... Fruto dos tempos conflituosos de agora, desculpai esta mera recordação de um ex-jovem libertário em tempos de Apocalipse light combatido à força de paracetamol e quarentenas que na realidade são meras quinzenas... ficamos chatos com a idade, não é? 

Não sei se alguém na blogosfera chegou a conhecer a página Esquerda Fofinha no Facebook, era uma página de sátira que prometi editar em livro mas cujo autor, num rompante psicótico suponho, decidiu apagar numa qualquer madrugada por falta de tempo para grande tristeza e crítica minha. Criticava com textos humorísticos de uma qualidade exemplar a esquerda que deixara de acreditar na revolução e era precursora de um debate que entretanto se tornou pertinente em toda a Europa: o conflito entre esquerda trabalhista e esquerda cosmopolita/identitária (que tenho apodado de histérica, mas dado ter alguns conhecidos que por lá anda agora ando a tentar conter-me e utilizar os termos "cosmopolita" "identitária". Faz-me falta.

Curioso como com o coliving, o vegetarianismo e o ciclismo uma certa esquerda transformou o modo de vida de sempre dos pobres (que dividiam quartos, não tinham dinheiro para comer carne e só tinham a bicicleta como transporte por restrições financeiras) numa coisa fixe e progressista...

Temos mesmo que dedicar parte de um número da Libertária a relatar o sucesso da revolução democrática da esquerda mexicana... inspirada em Hugo Chávez, claro!